sábado, 9 de abril de 2011

O Taxista


                Dia de mudança todos sabem como é. De qualquer mudança: mudança de turno, de dieta, de trabalho, de supermercado, de trajeto, de corte de cabelo. Sempre nos causa uma apreensão, um medinho, uma insegurança pelo novo, pelo desafio. Não sabemos se estamos na rua certa, onde está aquela marca de café que gostamos tanto, quem serão nossos novos companheiros de trabalho, se as pessoas vão gostar do novo visual. Por tudo isso geralmente mudamos apenas quando é necessário. Mas a maior mudança de todas, a meu ver, é a de casa, tanto que damos a este ato o nome: Mudança! Trocar de casa implica mais do que medo do novo, mais do que muita desordem e muito trabalho pra organizar tudo, mais do que tempo pra descobrir tudo de novo aos redores do novo lar: a nova farmácia, a nova padaria, os novos pontos de ônibus, os novos cinemas, os novos vizinhos, os novos amigos (olha que bonita descoberta: dentre todos os itens, os amigos são os únicos que não se trocam, apenas se somam!). Apesar de tudo, mudar sempre trará muitos pontos positivos porque, independente do motivo, mudar é novidade. Quando viemos viver em Buenos Aires, viemos para uma casa muito grande, muito cara e muito linda. Muito cara para três, ela era pra seis! De início éramos cinco, depois quatro, mas na verdade éramos desde sempre só os três. Então pesou e, com aperto no coração, tivemos que desapegar. Nove malas e mochilonas, violão, computadores, aparatos de cozinha, comida, travesseiros, livros, cascos de cerveja, tudo estava na porta da antiga casa às 11 da manhã do dia 11 de março de 2011.  Faltava apenas a condução para tanta coisa. Teriam que ser dois taxis pelo menos, e eu fui sozinho com a maioria das bagagens no primeiro que aceitou a me dar essa mão. Ansioso, fui colocando tudo aleatoriamente no porta-malas e no banco de trás.

- Despacio!

                Ele me pedia calma! Depois de toda a minha ação, retirou item por item e completou:

- Los más grandes primero, pues los chiquitos puedem irse arriba de los mayores, pero el contrario, no.

Outra dura veio quando quase rasguei o estofado do carro com a rodinha de uma mala. Decidimos juntos de que ele terminaria o serviço sozinho, mesmo porque faltava apenas o violão. Passaríamos  pelo menos meia hora juntos e sozinhos, eu e aquele senhor de bigodes brancos, de cara fechada e poucas palavras, que parecia estar fazendo um favor pra mim, como de fato estava pois, mesmo cobrando pela viagem, tinha sido difícil achar algum taxista disposto a empanturrar o carro com tanta tralha.
Afim de quebrar o gelo e selar a paz entre um brasileiro e um argentino, puxei o assunto que não poderia ser outro:

- O senhor gosta de futebol?

- Sim!

Respondeu ele com um entusiasmo que me fez pensar se eu deveria realmente ter aberto minha boca durante aquela viagem que já se tornara longa, apesar de termos avançado apenas uma esquina do marco inicial.
Por outro lado, ele me dera o direito de permanecer calado e apenas desfrutar das ruas que ainda não conhecia na cidade. Mas eu queria mesmo era conversar e insisti:

- Que time o senhor torce?

Parecendo tirar uma com a minha cara, respondeu:

- Gosto,  mas não acompanho!

Silêncio pelas próximas cinco quadras que se seguiram até que eu, quase que pedindo desculpas, perguntei:

- Estamos longe?

Com o mesmo entusiasmo de outrora:

- Mais ou menos!

Voltei à paisagem. E, dentre casas, prédios, ruas, havia uma placa da Brahma, que me lembrou: sou brasileiro e não desisto nunca!

- Por que Juan Perón é tão importante pra Argentina?

Parecia que ele esperava por uma pergunta que lhe valesse a pena desperdiçar os perdigotos que então descobri voar de sua boca quando fala muito.

- Perón foi como Vargas, porém diferente.

Fez questão de falar com calma e pausas.

- Ele criou leis trabalhistas, estipulou uma jornada de trabalho, beneficiou as mulheres grávidas, fez um salário mínimo. Tudo está vigente até hoje. Outros com certeza fariam, mas foi ele que fez. Ele agiu em prol dos trabalhadores, como deve ser feito e, mesmo com todos os defeitos que surgiram depois, ele se deteve ao seu discurso inicial, e estava do lado do povo, ele era populista, trabalhou muito bem essa imagem ao ponto de o povo na época não se importar muito com seus luxos, porque ele tinha muito, assim como Vargas. A diferença é que ele não quis virar o rei da Argentina como Vargas quis virar o do Brasil. De certa forma Perón deu sempre poder ao povo, mesmo que só em discurso. Então mesmo quando o país não atravessa um bom momento no seu comando, as pessoas trabalhavam motivadas e acreditando no país. Vargas quis criar o seu estado novo e gerou revolta na população, foi imperialista e ditador. Foi muito ganancioso, como os demais presidentes que o Brasil teve. Aliás, o que Deus deu de jogador bom pra vocês ele deu de presidentes ruins. O Brasil, esse país maravilhoso, enorme, de pessoas maravilhosas e governantes medíocres. Durante muito tempo, brasileiros tinham fama de gatunos aqui: roubavam nas lojas, tentavam entrar sem pagar no ônibus, mas isso faz tempo. Agora mudou. O Lula é o melhor presidente que a América Latina já teve, e um dos melhores que o mundo já teve, sabe por quê?

Eu só poderia dar linha pra pipa:

- Por que?

- Porque ele pintou o elefante! O Brasil era o elefante branco porque os presidentes não queriam resolver o principal problema. Veja bem: A Argentina tem a classe média muito forte. A classe média não gasta com supérfluos, não tem muito luxo, mas não vive na miséria. A Argentina é em seu DNA socialista, e o povo de um país socialista é mais unido e mais forte. Por isso que Maradona é mais ídolo pros argentinos do que o Pelé para os brasileiros. No Brasil o dinheiro é mal distribuído e a classe predominante é a dos mais pobres. O que o Lula fez: concentrou sua ação na classe predominante, conseguiu manter a economia estável para que as prestações fossem viáveis e os pobres pudessem comprar e desenvolveu programas que deram dignidade para os miseráveis. E quando um miserável sente dignidade pela primeira vez, ele nunca mais quer deixar de ter. E o que dignifica o homem?

- O trabalho!

- Claro! O miserável quer trabalhar. E olha que interessante: aumentou o número de pessoas querendo trabalhar e mesmo assim o desemprego diminuiu muito. Ou seja, emprego tinha, não tinha gente querendo trabalhar. Agora os pobres do Brasil, que são muitos, podem comprar, podem rodar o dinheiro, o que fez nos últimos 8 anos o Brasil crescer como nunca. E o Brasil crescendo é a única esperança que temos pra América do Sul se tornar um continente independente. E pra isso acontecer falta pouco, falta a gente ser um pouco mais chavista e a Venezuela um pouco menos, e adivinha quem é a única pessoa no mundo que poderia fazer o  Chávez ser menos chavista: Lula, mas agora ele saiu. A Dilma está vindo amanhã conversar com a Cristina e os argentinos esperam que ela não mude o rumo das coisas.

Era interessante ouvir a análise de um estrangeiro sobre o nosso desenvolvimento e a viagem se fez bem mais curta do que eu esperava, tanto que, quase que saindo de um transe, o taxista que mais tarde se apresentaria como Nicolás me perguntou:

- Qual é o nome da rua mesmo?

- Estados Unidos, altura 828!

- Já passamos!

Desligou o taxímetro, e aceitando minhas implícitas desculpas disse apontando para os 49 pesos que a máquina marcava:

- você vai pagar $45!

Eu disse que não tinha problema pagar a tarifa rodada, mas ele fez questão.

Enquanto procurava um retorno ainda brincou:

- Você, um brasileiro, na Argentina, morando nas Estados Unidos. É quase uma convenção da ONU numa pessoa só. Faça alguma coisa por nós!

Humildemente respondi que não havia muito que eu poderia fazer. Ele estacionou o carro em frente ao meu novo endereço e me aconselhou:

- Comece tirando a mala de rodinhas com cuidado e você já estará fazendo alguma coisa.


Por Danilo Santo


  

Um comentário:

  1. Danilo, muito, muito bom! Conforme fui lendo fui imaginando a conversa de vocês. Até a voz do taxista parecia que eu estava ouvindo. Adorei!
    Bom seria se Thales e Monique descrevessem a ida deles também. Bjs...

    ResponderExcluir